segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Bibliotecas "proibidas"

 

Universidade marroquina de Al-Qarawin que alberga uma das bibliotecas mais antigas do mundo

Praticamente todas as Bibliotecas possuem o que se costuma chamar de "reservado". Normalmente é esta a sua definição: "Reservados das bibliotecas" refere-se a colecções especiais de obras raras, frágeis ou importantes, separadas das colecções gerais e não acessíveis livremente. A reserva visa a conservação e é comum em bibliotecas de património, que podem digitalizar os seus fundos para permitir o acesso público."

a "porta secreta" da biblioteca de al-Qarawiyyin

E depois há as chamadas e pouco conhecidas "Bibliotecas proibidas"; uma espécie de camada dentro dos reservados onde só alguns priviligiados têm acesso para fazerem "estudos especiais". Trata-se de documentação ainda não "contaminada" pelos "ratos de bibliotecas" exteriores que trabalham para outros "ratos" que depois fazem negócio com o que obtêm; os chamados "mercenários de histórias".

Biblioteca da University de al-Qarawiyyin

 Mas aqui quero falar apenas dos que trabalham honestamente nessa tal camada proibida que só a eles se encontra acessível. Felizmente temos a sorte e a honra de conhecer um desses priviligiados. De origem tunisina, há muito radicado em Marrocos, professor de História na Universidade de Al-Qarawin, amigo de longa data, visita-nos de vez em quando e junta-se às nossas longas tertúlias que têm lugar na cidade de Lagos (Algarve) até altas horas da madrugada. Recentemente esteve por cá durante uma semana.

Lagos, Algarve

 Numa dessas tertúlias, falávamos sobre populações moçárabes e cristãs do Alentejo que foram levadas cativas para Marrocos depois das invasões punitivas de Abu Iúçufe Iacube Almançor (1190-1191), quando me lembrei de perguntar se na dita "biblioteca secreta" de al-Qarawin haveria algo sobre o império romano, uma vez que o norte de África esteve sob o domínio desse mesmo império e era natural que houvesse algo sobre o assunto nos seus recôndidos reservados que ainda se não conhecesse.

Para surpresa minha, o nosso amigo respondeu que sim, que havia um relato de um general romano que tinha participado na fundação de Mérida a mando do imperador Otávio Augusto, sobre o qual relato tinha feito um recente estudo. Cada vez mais curioso perguntei-lhe se nesse relato vinha alguma referência a Ammaia de Marvão. Respondeu-me que sim, que se eu estivesse interessado me enviaria cópia desse estudo.

Recebi-o na minha caixa de correio esta tarde e devorei o seu conteúdo. Sobre o que nos revela da Ammaia não vou falar aqui pois entendo que a publicação deste inédito deverá ter lugar no nosso outro blogue "Marvão, ninho de águias" com o título "Ammaia, a Hermínia da  Legio V Alaudae".

Aproveito para aqui agradecer de forma sincera a colaboração que o nosso amigo historiador (cujo nome não menciono a seu pedido) nos tem prestado, renovando os meus votos de máximo sucesso para o meritório trabalho de investigação que tem desenvolvido, lembrando-lhe que será sempre benvindo ao nosso Algarve, nosso e dele, e que o partilhamos com ele como se partilha com um amigo especial e um irmão. Bem haja. 

 

Fatima Muhammad al-Fihri
fundadora da biblioteca al-Qarawin

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

O Paço de Ilhas

  

Ruínas do Paço de Ilhas em Santo Isidoro
 
 Tal como dissémos anteriormente, a ruína da Torre templária de Argolim, da desaparecida Comenda de Santo Isidoro de Ribamar, deu lugar mais tarde ao "palácio" cuja memória se julga perdida: o Paço de Ilhas. Mas estará essa memória perdida, para sempre? Não para nós. Vamos aqui avivá-la, embora de forma sucinta pois a sua história tal como se nos revela, secreta e atribulada, daria para encher outro blogue como este.
 
As Casas do Templo no Chão de Ulmeiros fundadas em 1192 na verdade não chegaram a "amadurecer" na posse da Ordem do Templo uma vez que, 26 anos depois, estas passaram para a Ordem de Avis num acordo assinado secretamente em 1218 entre ambas, embora continuassem com o estatuto especial de "Comenda secreta".
 

 
Esta "Comenda" de Santo Isidoro de Ribamar esteve funcional por mais de um século até que a Ordem do Templo foi suspensa pelo Papa Clemente V e, pelo rei francês Filipe o Pérfido difamada e perseguida. Na altura e por toda a Europa, o poder eclesiástico aproveitou para capturar e destruir os vestígios documentais dos Templários a que conseguiu deitar a mão. E a nossa "Comenda secreta" não foi excepção. Foi pilhada, destruída e abandonada. Mesmo sendo já património da Ordem de Avis.
 
É, no entanto, aqui que começa verdadeiramente a história do Paço de Ilhas, não em Santo Isidoro de Ribamar, mas muito mais a sul, no reino do Algarve:
 
 A 17 de Novembro de 1307, vindo do porto de La Rochelle, França, chega a Tavira o cavaleiro Gerárd de France, comandante da nau templária "Bon Vent" ...aportou com carrego de bons cabedais e portadora de carta de el-rei Dom Denis que lhes permitia tomar assento com todos os direitos no lugar de tavilla."
 
Em 1386, um seu descendente, João da Franca (Jean de France), natural de Tavira, já com o nome e sobrenome português e cavaleiro da Ordem de Cristo, veio para a "Quinta dos Ulmeiros" e aí se estabeleceu. Construíu a suas expensas o Paço de Ilhas a partir das ruínas da antiga Comenda, com a autorização de D. Lopo Dias de Sousa que detinha o senhorio da vila de Mafra, Ericeira e Enxara dos Cavaleiros.
 
Frei D. Lopo Dias de Sousa  foi o último mestre clérigo da Ordem de Cristo, senhor de Mafra e Ericeira, como acima referido, e mordomo-mor da rainha D. Filipa de Lancastre. Era filho de Maria Teles de Meneses e de Álvaro Dias de Sousa. Lutou ao lado do Mestre de Avis, na guerra da independência, tendo-se tornado amigo íntimo da Casa Real e em particular do infante D. Henrique.

 No Paço de Ilhas, juntaram-se a Frei D. Lopo Dias de Sousa, o dito cavaleiro João da Franca e Vasco Anes da Costa, ambos de Tavira. Os três darão início ao projecto "Ilhas e Terras novas de Ocidente", que mais não é que a compilação de todos os registos cartográficos existentes no reino, muitos deles secretos, para "estudo e uso nos achamentos das terras novas".
 
Brasão de armas de
Vasco Anes Corte Real
 


























E quem era este Vasco Anes da Costa? Nada menos que o patriarca dos futuros Corte Real. “foi caval.ro e fidalgo honrado de tavilla em tempo de Rei dom Fernando e del Rei dom João o primeiro”. Da antiga linhagem dos Costa, descendente de Martim Mendes da Costa, um dos fidalgos que esteve na conquista do Algarve, Vasco Anes “Viveo no logar de Arruda (o topónimo correto é Arrutéia), Freg.a de N. Sª da Luz, Termo de Tavira". 
O cronista Fernão Lopes na lista das pessoas que ajudaram o Mestre de Avis a defender o reino das agressões castelhanas diz : “do Reino do Algarve, de Tavira..., Vascoeanes pay de Vascoeanes Corte Real”. E acrescenta: “Aquelle em Portugal antigamente já Vasqueanes da Costa foi chamado, do corpo, e membros forte, muy valente, de coração feroz, e animo ousado: de geração antiga descendente, Fronteiro mór do Algarve intitulado: era também, (que nada então lho tira) Alcaide mór de Silves, e Tavira.”
 
 Um dos filhos deste Vasco Eanes Corte Real, o navegador João Vaz Corte Real, foi um dos primeiros europeus a chegar ao continente americano por volta de 1470, chegando à Terra Nova. Mais tarde, realizou outras viagens que lhe permitiram explorar as margens dos rios Hudson e S. Lourenço, até ao Canadá, e chegar à península do Labrador.
 
Planisfério de Cantino (1502), onde está representado a Terra Nova como “Terra del Rey de portuguall”
 
João Vaz Corte Real participou em expedições luso-dinamarquesas, ao abrigo do acordo firmado entre o rei D. Afonso V e o seu primo Cristiano I da Dinamarca. No século XV, a Dinamarca era um vasto reino que controlava os mares do norte. Portugal estava mais do que nunca empenhado na exploração do Oceano Ártico, devido à pesca do bacalhau e à tentativa de descobrir por aí uma passagem para a China. Em 1461, o rei de Portugal D. Afonso V estabeleceu um acordo com Cristiano I para a exploração dos mares do Norte.
 
 

 Entre as várias expedições que foram feitas destacam-se: Em 1473, o Infante D. Fernando, mandou João Corte Real e Álvaro Martins Homem descobrir a Terra Nova dos Bacalhaus. Em 1495, João Lavrador e Pêro de Barcelos chegaram à Gronelândia e à Península do Lavrador. Entre 1500 e 1506, os irmãos Miguel e Gaspar Corte Real, seguindo a rota do seu pai, procurando uma passagem para os mares da China, chegam à Terra dos Bacalhaus e desaparecem pouco depois nos mares gelados do Norte. Deixaram no entanto testemunhos da sua passagem na enigmática "pedra de Dighton", no estuário do rio Taunton, em Berkley, Massachusetts (em tempos parte da vila de Dighton, daí o nome da rocha).

Interpretação da inscrição na Pedra de Dighton - Museu da Marinha, Lisboa


 João Vaz Corte Real teve sete filhos. Três deles, Gaspar Corte Real, Miguel Corte Real e Vasco Anes Corte Real, foram navegadores audaciosos, continuando o espírito de aventura do pai. Seu filho mais novo, Gaspar, em 1500, fez a sua primeira viagem à Terra Nova então chamada "Terra dos Corte Reais". Partiu em 1501 numa segunda expedição ao Continente Americano e nunca mais voltou. O outro filho Miguel, partiu em 1502 em busca de seu irmão e também nunca mais foi visto.

 Como curiosidade registe-se que estiveram guardados no Paço de Ilhas os portulários (mapas cartográficos) do pouco conhecido geógrafo e cartógrafo portugês Pero Roiz (Pedro Rodrigues) que constavam na descrição pormenorizada de toda a costa oriental das américas e uma boa parte da costa ocidental da América do Sul completado em 1503.

A cópia de uma parte deste mapa foi entretanto roubada por corsários turcos. Foi razurada, alterada, acrescentada com comentários otomanos. Uma terça parte do mapa que dizem de Piri Reis sobrevive hoje num museu de Istambul. Podem dizer o que quiserem mas sem dúvida que o nome do "almirante" Piri Reis pouco tem de otomano pois não passa de uma adaptação do nome do cartógrafo português Pero Roiz, autor oficial da obra.

 

A propósito, e para terminar, já repararam que estes mapas estavam completados com todos os pormenores na própria época dos "descobrimentos", o que prossupõe um trabalho iniciado várias décadas antes e, em alguns casos, séculos antes como o tratado "Naválica" da Ordem do Templo?
 
A maioria deles estiveram guardados por tempo indeterminado no "Tombo" do Paço de Ilhas.
 
"Os Cabrais e os Corte-Real na Terra Nova"
volume 1 (inéditos) 
 
 

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A Torre de Argolim


 1192. Mestre Gualdim Pais ordena a Sancho Monis a edificação da torre de Argolim para que sirva de base à fundação da Comenda Templária de Santo Isidoro de Ribamar. Esta Comenda teria os seus limites a norte no rio Safarujo com foz em Santa Susana (hoje S. Lourenço) e a ribeira de Benazer (a actual ribeira d'Ilhas) a sul.

* "... escolheram um lugar saudável para a fundação das casas do Templo a que deram o nome de Chãos de Ulmeiro por já haver ali ruínas de antiga ocupação junto de um vasto bosque de ulemiros e carvalhos de grosso porte. Mestre Sancho ali mandou erguer uma torre e adossar-lhe habitação para os primeiros freires. Depois mandou que se fizesse uma cerca de protecção às casas e mais tarde outra que cercava também toda a mata..." 

Na época (século XII) o rio do Safarujo não estava ainda açoreado e era navegável até distância considerável da sua foz onde a antiga muralha de acostagem, certamente de construção romana, deu o nome ao lugar como se depreende pela descrição: 

* "... de início a torre se chamou de Argolim e teve este nome por indicação de um velho moleiro, mouro alforriado, que disse ter a sua azenha no lugar a que chamavam Argolim por haver ainda restos de uma muralha muito antiga na margem do rio com pesadas argolas de ferro cravadas que serviriam para prender os navios que subiam o rio até quase uma légoa da foz." 

Com o tempo, a Comenda cresceu para sul ocupando solos produtivos até à fronteira norte da vila da Ericeira tendo deixado topónimos que sobreviveram até hoje como "Abadia" e "Vale dos Frades", ocupados mais tarde por outras comunidades religiosas.
 
De "Argolim" nunca mais se ouviu falar. A Comenda definhou tornou-se novamente uma ruina. A ribeira de Benazer mudou de nome. A torre e anexos foram derrubados para deles nascer o enigmático Paço d'Ilhas (tema da próxima publicação) o qual acabou dando o nome à ribeira:
 
Ribeira d'Ilhas. 
* "Os Cabrais e os Corte-Real na Terra Nova"
volume 1 (inéditos) 
 
 

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

O solar que mudou de terra

 

 Era uma vez... um solar que foi desmontado, pedra por pedra, e remontado a vários quilómetros de distância. Parece ficção mas aconteceu mesmo.

 


Construído na freguesia de Vale de Azares, este solar guardava muita da história dos Amarais, Cabrais e Albuquerques na sua biblioteca particular, até que esta se perdeu num incêndio. Este acontecimento somado a problemas económicos já existentes, iniciaram o declínio desta casa senhorial que acabou vendida quase em ruínas. Dizia João Trabulo no Correio da Beira Serra em Abril de 2024: 

" O Solar dos Amarais existiu em Vale de Azares, Celorico da Beira, também, conhecido por Solar de Fonte Arcada, por estar implantado numa propriedade no lugar de Fonte Arcada, um dos quatro povos que constituem a freguesia de Vale de Azares, no concelho de Celorico da Beira."

" Era uma casa senhorial com três pisos, rasgados por grande quantidade de portas e janelas. Apresentava na fachada principal uma pedra de armas, onde realçava a presença dos Cabrais e dos Amarais e a frontaria de uma capela dedicada a Nossa Senhora do Carmo. O solar foi mandado edificar por José Feliciano Amaral Cabral Saraiva que nasceu em 1816."

 Margarida Mendes de Rezende, casada com um dos filhos do proprietário, revela-nos um pouco da sua história:

" Mais tarde, quando já estava em ruínas em consequência de um incêndio, foi comprado por meu sogro, José de Sousa Mendes de Rezende, segundo se supõe, à família Cabral Metelo que nos anos 50/60 viviam no Largo da Sé, em Coimbra. No início da década de 70 do séc. XX, foi desmantelado e transferido, pedra por pedra, para a Quinta dos Corgos, cuja propriedade ia desde o Mondego até aos limites de Vale de Azares, na freguesia da Lajeosa do Mondego, na reta das Primas na EN 16. As pedras foram todas numeradas para facilitar a genuinidade do edifício”.

 Correio da Beira Serra, " Solar dos Amarais ou Solar Fonte Arcada – Lageosa do Mondego"

 

O solar "remontado" pedra por pedra a 4,5 kms do lugar original

 

Distância de Vale de Azares (Grichoso) a Lageosa do Mondego
 

Este património retirado à freguesia levou consigo o azar que tinha transformado o Vale de Flores (nome primitivo) num Vale de Azares. No lugar para onde foi mudado, chegou a ser uma casa de vício noturno, definhou e apagou-se. No local original restou o vazio e a memória de vivências mais nobres.

O solar dos Amarais ainda em Vale de Azares

Tinha eu os meus 7 ou 8 anos quando estive com o meu pai neste solar. "Vamos passar uns dias com as primas Cabrais a Vale de Azares" dizia-me ele. Na época ainda o imóvel estava em Vale de Azares, terra de muitos dos meus antepassados. Lembro-me vagamente das irmâs Cabrais, já idosas, uma delas a um canto da cozinha fazendo um caldo verde ao fogo de lareira numa panela de ferro. As suas vozes miudinhas, melodiosas, amáveis, francas.

Lembro-me de ter dormido num dos quartos de visitas, talvez num destes na foto acima. Lembro-me também de ir até à adega mais abaixo e comer um merendeiro bem recheado de carne e chouriço e de beber uma caneca de vinho caseiro. Depois disso, e porque não estava habituado à pureza daquele tinto, não me lembro de mais nada...

Anos mais tarde, quando o solar já tinha sido trasladado para Lajeosa do Mondego, chegou-me às mãos um livro, um dos poucos ou talvez até o único sobrevivente do incêndio, porque teria sido anteriormente oferecido a um familiar, de encardenação muito antiga; o primeiro de três volumes intitulados "Os Cabrais e os Corte-Real na Terra Nova", que mantenho comigo e de onde tirarei as próximas memórias a publicar aqui.

 

Solar dos Cabrais(Açores, Celorico da Beira)

sábado, 2 de agosto de 2025

Estelas de S. Clemente

 


 A igreja de S. Clemente (Matriz de Loulé) guardou durante séculos, reutilizadas como materiais de construção em diferentes pontos da igreja, um conjunto de estelas discóides da época medieval que teriam vindo da necrópole que se situava no exterior do templo. Segundo informações do reverendo Padre Cabanita, elas terão surgido aquando das obras efectuadas em 1971 sendo depois enviadas por ele para a alcaiadaria do castelo de Loulé. 

  


Na igreja de S. Clemente conservam-se pelo menos três outros monumentos do mesmo tipo, dois deles encastrados nos paramentos das paredes da nave principal e um outro no chão da capela de Nossa Senhora do Carmo. Podemos pois, contabilizar pelo menos nove estelas discóides provenientes desta igreja.

Note-se que a Flor de Liz  branca que aparece frequentemente inscrita nestas estelas é um antigo símbolo de pureza celeste, de inocência e de virgindade, mas também emblema de regeneração, de prosperidade e de poder. Símbolo feminino e do amor, por excelência, foi associado a Maria, surgindo sobretudo na Europa a partir do século XI com a sua crescente devoção.

 Com a influência cluniacense e cisterciense desenvolveu-se a teologia marial e o culto à Regina Coeli, à qual todas as abadias eram dedicadas, sendo padroeira de muitos templos. Neste sentido, as estelas com imagens da Flor de Liz representam a protecção dos defuntos por Maria.

 


A igreja de S. Clemente teve as suas origens na segunda metade do século XIII provavelmente mandada fundar pelo arcebispo de Braga, D. João Viegas que em 1251 incumbiu os frades dominicanos de construir vários templos no reino do Algarve. No dia 4 de Dezembro de 1298 passou para a Ordem Militar de São Tiago por escambo feito entre o rei D. Dinis e o mestre da referida Ordem.

Em  1319 a Ordem de Cristo estabeleceu a sua primeira Sede em Castro Marim com cavaleiros da Ordem do Templo, cavaleiros esses que quando faleciam faziam-se sepultar com os símbolos da Ordem de origem, na qual tinham professado antes; a do Templo. Por isso nada mais natural que tivessem estado presentes em Loulé e ali tivessem sido sepultados no cemitério da igreja de S. Clemente.

 


segunda-feira, 28 de julho de 2025

Flor da Rosa

 



Rosa : Flor : 
de Damasco já esquecida :  
na Flor da Rosa adormecida.
 
"Inscrição que se podia ler na pesada tampa de pedra que, no chão, a um canto e ao fundo da Casa do Capítulo, servia de acesso à cripta. Lá dentro, no seu pedestal, a Flor de Damasco, vinda em tempos do Salão dos Poetas do Palácio Xarajibe (Palácio das Varandas do Castelo de Silves) jazia indiferente ao passar do tempo, bela e inigmática."
 
 Silves, Touria da Baleia, Santa Maria da Feira, Flor da Rosa... o percurso sinuoso não lhe tinha tirado o encanto. Estava a salvo no seu último repouso.
 
Fundado em 1356 por Álvaro Gonçalves Pereira, o solar recebeu o nome da Flor da Rosa em virtude de a  albergar no seu seio. Em inícios de 1894 restava-lhe ainda de pé a antiga igreja fendida de alto a baixo, formando o flanco avançado de um castelo em ruínas. Em cima, no ângulo de uma das muralhas, que era por certo o fundo do arco cruzeiro, salientava-se, já destroçada, a varanda de um mata-cães.
 
Entrava-se no recinto murado da velha mansão, por uma baixa porta ogival, de grossas hombreiras talhadas em granito negro, esboroadas pelo tempo. Em frente, num vasto terreiro, em volta do qual ainda existiam as divisões de alvenaria que outrora foram lugares de venda dos "panneireiros", por ocasião das feiras, e cujo aluguer foi uma das fontes privilegiadas de receita do castelo.
 
A igreja ficava à direita. À porta a haste de uma cruz de pedra sobre degraus deslocados. Silêncio profundo,  apenas perturbado pelo chilrear dos pardais, aninhados nos vãos dos enxilhares da argamassa. O primitivo portal da igreja desapareceu com os restauros do século XVII e o que o substituiu, aberto entre o corpo avançado de um dos braços do cruzeiro e a torre, era moderno, sem beleza de linhas ou delicadeza de pormenores.
 
 
Os mesmos restauros substituiram nas muralhas do convento as estreitas frestas por grandes janelas quase quadradas, de hombreiras finas de mármore branco. Dando uma volta ao redor do velho solar doía ver a ruína e o abandono a que tudo chegara. Algumas janelas eram enormes buracos escancarados. As portas emparedadas para evitar que lá por dentro se acoutassem feras e bandidos.
 
A igreja da Flor da Rosa era em forma de cruz latina, com as paredes nuas, altar-mor e mais dois altares no topo dos braços cruzeiros. Os tectos subiam em abóboda de lanceta. Ao meio da nave erguia-se , sem epitáfio, o túmulo do fundador da casa, o prior Álvaro Gonçalves Pereira, tendo apenas como indicação duas cruzes na cabeceira da lápide: uma da Ordem de Malta e outra, floreada, dos Pereiras.
 
 
Fizeram bem em não lhe deixar epitáfio. Quando um frade guerreiro, filho de um arcebispo, deixa no mundo trinta e dois filhos ilegítimos, e que entre estes um se chamou Nuno Álvares Pereira, pode ficar debaixo da campa sem que nela se lhe grave o nome.
 
No cruzeiro, eleva-se do chão, assente sobre leões, uma fina lápide, tendo gravadas as armas dos Almeidas. "Aqui jaz D. Diogo Fernandes de Almeida, prior do Crato". Sobre a lage que cobre os ossos deste varão ardiam várias lamparinas votivas e viam-se vestígios de culto constante. Como já se disse, esta casa foi fundada em 1356 por Álvaro Gonçalves Pereira "para remissão dos seus pecados", como diz a carta de doação que el-Rei Dom Fernando deu ao fundador como padroeiro da igreja de Santa Maria de Castelo de Vide.
 
A lenda conta que a edificação da igreja, onde então existia uma ermida de São Bento, seria dedicada a Nossa Senhora das Neves, na piedosa intenção de restituir a imagem ao seu antigo lugar, mas por mais que se esforçassem, os trabalhadores, no dia seguinte encontravam sempre as ferramentas no ponto exacto onde a imagem tinha sido encontrada. Por isso aí se construiu a igreja, embora em terreno falso e alagadiço, "entendendo-se" que era vontade da Virgem ficar no lugar onde tinha estado oculta tanto tempo.
 
Quasi rosa plantata super rivus aquarum.
 
Mas isso é a lenda que encobre aquilo que sabemos sobre a outra "rosa"... 
 
Da igreja ia-se para a sacristia, onde já se interpunham as obras do século XVII, por um grande arco de volta inteira, sobre o qual foi lançada a escada que levava ao côro. Existia nesta sacristia um quadro pintado em madeira, representando o Calvário, de bom desenho e fina pincelada.
 
Do côro passava-se depois ao velho convento. Os telhados há muito que ali abateram depois de apodrecidos os madeiramentos. O edifício está hoje a descoberto. Vai-se de uma a outra sala por portas estreitas e baixas, que eram outros tantos meios de defesa. Na cachorrada, em volta do coroamento das paredes da igreja, e que lá de baixo parecem restos de uma larga sanca, correm os balaustres de espaçosa varanda onde se enraizaram figueiras silvestres.
 
Por escada mal segura que se escancara na volta de um corredor, desce-se a um recinto sombrio, escuro, severo, musgoso e húmido, que deve ter sido a casa do capítulo. Casarão comprido, coberto por abóbada de volta inteira, cujos arcos mestres descansam em cachorros salientes das partes e vem apoiar-se sobre três colunas torcidas que se elevam ao centro. As paredes são de grossa enxilharia regular, sem vestígios de revestimento, e entre as marcas de grandes e grosseiros caracteres que assinalam cada uma delas, lê-se a data de 1642.
 

A 17 de Janeiro de 1897 as muralhas da igreja vergaram-se ao tempo e ruiram. 
 
  



quarta-feira, 16 de julho de 2025

(1) Bisa Domingos

 


  Nas longas noites de inverno, o meu avô António costumava reunir-nos à sua volta para, com um brilhosinho nos olhos, partilhar connosco todo um rosário de memórias. Por vezes madrugada dentro. Histórias antigas de família que nos deixava completamente rendidos e encantados. Algumas dessas memórias ficaram-me gravadas para sempre. Ávido em aprender os sentidos da vida, guardava com extremo carinho todos os pormenores, catalogando-os no meu imaginário de miúdo com a precisão de um bibliotecário.

  Dizia o meu avô António que o bisavô Domingos, seu pai, sempre foi um "homem dos sete ofícios". De pequena estatura mas com uma "genica" enorme, era um destemido aventureiro. Exímio marinheiro, pescador por vocação e amor ao mar, tinha uma pequena embarcação lá para os lados de Cambelas onde vivia com a mãe. Quando por vezes o rigor do inverno se impunha e o mar "não dava", virava jornaleiro em terra, aceitando todo o tipo de trabalhos. Fazia de tudo! Um autêntico "fura vidas".

   "Uma vez foi contratado para a apanha da cereja, lá para os lados do Fundão. Corria o ano de 1893. Em princípio, o bisa estaria fora uns dois meses, isolado, sem dar notícias. Acabou por aparecer em casa quatro meses depois, estranho, pensativo, trazendo com ele uma carroça que não lhe pertencia, puxada por um macho possante. A mãe ao vê-lo comentou: "Outra vez no contrabando. Ai Domingos, um dia destes...", e olhando as duas caixas de madeira, com fechaduras em forma de cruz perguntou-lhe: "... o que é que trazes aí desta vez?

  Então o bisa contou-lhe em pormenor a aventura que tinha vivido. Tinha estado na campanha da cereja e quando esta acabou, recebeu a proposta para um trabalho extra. Teria de ir com mais uns quantos trabalhadores, acompanhados de outros indivíduos que nunca soube quem eram, a S. Miguel de Acha que ficava a uns quilómetros do Fundão, recolher uns "baús" e trazê-los para Lisboa. Como ficava de certa forma a caminho de casa e era um trabalho bem pago, aceitou.

  A casa onde foram fazer a recolha era muito antiga, contou o bisa, e dizia-se que ia ser demolida juntamente com outras, pelo que tinham urgência no trabalho. Levaram horas na estranha "cave" a recolher livros, documentos e objectos e encheram seis malões que colocaram em três carroças. Sempre sob os olhares atentos do dono da casa, que dizia chamar-se David e um estranho frade que nunca disse o nome.

  Dispensados os outros trabalhadores, partiram para Lisboa mas poucos quilómetros depois começaram a ser perseguidos por soldados do rei que os tentaram parar. Fugiram em três direcções diferentes e como a guarda não se dispersou focando-se apenas numa das carroças que não a sua, viram-se o bisa Domingos e os companheiros, mais folgados na fuga. Apareceram no Rosmaninhal em casa da tia Maria Neves que lhes deu guarida por uns dias. O susto tinha sido grande e esperaram que as coisas acalmassem. Depois decidiram seguir viagem.

  Longa foi a jornada, sempre cheia de temores e sobressaltos, por campos enlameados, serras e vales, longe das estradas e povoações e quando chegaram por alturas da serra dos Candeeiros os colegas de viagem pediram ao bisa Domingos que tentasse chegar a casa o mais rápido possível e escondesse os malões bem escondidos porque levá-los para Lisboa seria demasiado arriscado. Disseram-lhe que alguém depois os iria buscar e ele seria bem recompensado. "Como é que eu os vou reconhecer?" perguntou o bisa. "Está a ver este anel? Será alguém com um igual." Responderam-lhe. E deram-lhe um para também se identificar. Depois separaram-se.

O bisa Domingos seguiu em direcção à costa e desceu até  Cambelas por caminhos que conhecia bem. Escondeu a carga que trazia, primeiro num moinho abandonado ali perto e depois numa pequena cave que escavou em sua casa por baixo do próprio quarto. E ali ficou o  seu "tesouro", como lhe chamava, guardado até que alguém o viesse buscar."

  Passaram-se anos e ninguém apareceu para reclamar o que ficou à sua guarda. A vida continuou como sempre fôra e o bisa Domingos casou, constituíu família, nasceram os filhos e coube a um deles, o avô António, ficar a saber da existência daquele espólio e da história que o envolvia. Passou-lhe o testemunho pedindo-lhe que guardasse segredo e só usasse o anel se necessário fosse. E os anos foram passando.

Sentindo o peso dos anos, o bisa Domingos cada vez menos aceitava os trabalhos de jorna, dedicando-se apenas ao que gostava de fazer: sair para o mar e pescar. Pescava sozinho no seu pequeno batel equipado com uma rudimentar vela e um par de remos. Muitas vezes adormecia com o fio de pesca atado ao dedo grande do pé à espera que o peixe "picasse". Já o tinham avisado para ter cuidado mas respondia sempre que se tivesse de morrer era no mar que tanto gostava. Num fim de tarde enquanto dormia e esperava que mais um peixe picasse, formou-se uma pequena nortada que logo se tornou tempestade... e o bisa Domingos nunca mais foi visto.

Tinha no entanto, garantido um novo guardião, herdeiro do seu legado.