Nas longas noites de inverno, o meu avô António costumava reunir-nos à sua volta para, com um brilhosinho nos olhos, partilhar connosco todo um rosário de memórias. Por vezes madrugada dentro. Histórias antigas de família que nos deixava completamente rendidos e encantados. Algumas dessas memórias ficaram-me gravadas para sempre. Ávido em aprender os sentidos da vida, guardava com extremo carinho todos os pormenores, catalogando-os no meu imaginário de miúdo com a precisão de um bibliotecário.
Dizia o meu avô António que o bisavô Domingos, seu pai, sempre foi um "homem dos sete ofícios". De pequena estatura mas com uma "genica" enorme, era um destemido aventureiro. Exímio marinheiro, pescador por vocação e amor ao mar, tinha uma pequena embarcação lá para os lados de Cambelas onde vivia com a mãe. Quando por vezes o rigor do inverno se impunha e o mar "não dava", virava jornaleiro em terra, aceitando todo o tipo de trabalhos. Fazia de tudo! Um autêntico "fura vidas".
"Uma vez foi contratado para a apanha da cereja, lá para os lados do Fundão. Corria o ano de 1893. Em princípio, o bisa estaria fora uns dois meses, isolado, sem dar notícias. Acabou por aparecer em casa quatro meses depois, estranho, pensativo, trazendo com ele uma carroça que não lhe pertencia, puxada por um macho possante. A mãe ao vê-lo comentou: "Outra vez no contrabando. Ai Domingos, um dia destes...", e olhando as duas caixas de madeira, com fechaduras em forma de cruz perguntou-lhe: "... o que é que trazes aí desta vez?
Então o bisa contou-lhe em pormenor a aventura que tinha vivido. Tinha estado na campanha da cereja e quando esta acabou, recebeu a proposta para um trabalho extra. Teria de ir com mais uns quantos trabalhadores, acompanhados de outros indivíduos que nunca soube quem eram, a S. Miguel de Acha que ficava a uns quilómetros do Fundão, recolher uns "baús" e trazê-los para Lisboa. Como ficava de certa forma a caminho de casa e era um trabalho bem pago, aceitou.
A casa onde foram fazer a recolha era muito antiga, contou o bisa, e dizia-se que ia ser demolida juntamente com outras, pelo que tinham urgência no trabalho. Levaram horas na estranha "cave" a recolher livros, documentos e objectos e encheram seis malões que colocaram em três carroças. Sempre sob os olhares atentos do dono da casa, que dizia chamar-se David e um estranho frade que nunca disse o nome.Dispensados os outros trabalhadores, partiram para Lisboa mas poucos quilómetros depois começaram a ser perseguidos por soldados do rei que os tentaram parar. Fugiram em três direcções diferentes e como a guarda não se dispersou focando-se apenas numa das carroças que não a sua, viram-se o bisa Domingos e os companheiros, mais folgados na fuga. Apareceram no Rosmaninhal em casa da tia Maria Neves que lhes deu guarida por uns dias. O susto tinha sido grande e esperaram que as coisas acalmassem. Depois decidiram seguir viagem.
Longa foi a jornada, sempre cheia de temores e sobressaltos, por campos enlameados, serras e vales, longe das estradas e povoações e quando chegaram por alturas da serra dos Candeeiros os colegas de viagem pediram ao bisa Domingos que tentasse chegar a casa o mais rápido possível e escondesse os malões bem escondidos porque levá-los para Lisboa seria demasiado arriscado. Disseram-lhe que alguém depois os iria buscar e ele seria bem recompensado. "Como é que eu os vou reconhecer?" perguntou o bisa. "Está a ver este anel? Será alguém com um igual." Responderam-lhe. E deram-lhe um para também se identificar. Depois separaram-se.
O bisa Domingos seguiu em direcção à costa e desceu até Cambelas por caminhos que conhecia bem. Escondeu a carga que trazia, primeiro num moinho abandonado ali perto e depois numa pequena cave que escavou em sua casa por baixo do próprio quarto. E ali ficou o seu "tesouro", como lhe chamava, guardado até que alguém o viesse buscar."
Passaram-se anos e ninguém apareceu para reclamar o que ficou à sua guarda. A vida continuou como sempre fôra e o bisa Domingos casou, constituíu família, nasceram os filhos e coube a um deles, o avô António, ficar a saber da existência daquele espólio e da história que o envolvia. Pediu-lhe que guardasse segredo e só usasse o anel se necessário fosse. E os anos foram passando.
Sentindo o peso dos anos, o bisa Domingos cada vez aceitava menos trabalhos de jorna dedicando-se apenas ao que gostava de fazer: sair para o mar e pescar. Pescava sozinho no seu pequeno batel equipado com uma rudimentar vela e um par de remos. Muitas vezes adormecia com o fio de pesca atado ao dedo grande do pé à espera que o peixe "picasse". Já o tinham avisado para ter cuidado mas respondia sempre que se tivesse de morrer era no mar que tanto amava. Num fim de tarde enquanto dormia e esperava que mais um peixe picasse, formou-se uma pequena nortada que logo se tornou tempestade... e o bisa Domingos nunca mais foi visto.
Nunca mais voltou.
Tinha no entanto, garantido um novo guardião, herdeiro do seu legado.