sábado, 2 de agosto de 2025

Estelas de S. Clemente

 


 A igreja de S. Clemente (Matriz de Loulé) guardou durante séculos, reutilizadas como materiais de construção em diferentes pontos da igreja, um conjunto de estelas discóides da época medieval que teriam vindo da necrópole que se situava no exterior do templo. Segundo informações do reverendo Padre Cabanita, elas terão surgido aquando das obras efectuadas em 1971 sendo depois enviadas por ele para a alcaiadaria do castelo de Loulé. 

  


Na igreja de S. Clemente conservam-se pelo menos três outros monumentos do mesmo tipo, dois deles encastrados nos paramentos das paredes da nave principal e um outro no chão da capela de Nossa Senhora do Carmo. Podemos pois, contabilizar pelo menos nove estelas discóides provenientes desta igreja.

Note-se que a Flor de Liz  branca que aparece frequentemente inscrita nestas estelas é um antigo símbolo de pureza celeste, de inocência e de virgindade, mas também emblema de regeneração, de prosperidade e de poder. Símbolo feminino e do amor, por excelência, foi associado a Maria, surgindo sobretudo na Europa a partir do século XI com a sua crescente devoção.

 Com a influência cluniacense e cisterciense desenvolveu-se a teologia marial e o culto à Regina Coeli, à qual todas as abadias eram dedicadas, sendo padroeira de muitos templos. Neste sentido, as estelas com imagens da Flor de Liz representam a protecção dos defuntos por Maria.

 


A igreja de S. Clemente teve as suas origens na segunda metade do século XIII provavelmente mandada fundar pelo arcebispo de Braga, D. João Viegas que em 1251 incumbiu os frades dominicanos de construir vários templos no reino do Algarve. No dia 4 de Dezembro de 1298 passou para a Ordem Militar de São Tiago por escambo feito entre o rei D. Dinis e o mestre da referida Ordem.

Em  1319 a Ordem de Cristo estabeleceu a sua primeira Sede em Castro Marim com cavaleiros da Ordem do Templo, cavaleiros esses que quando faleciam faziam-se sepultar com os símbolos da Ordem de origem, na qual tinham professado antes; a do Templo. Por isso nada mais natural que tivessem estado presentes em Loulé e ali tivessem sido sepultados no cemitério da igreja de S. Clemente.

 


segunda-feira, 28 de julho de 2025

Flor da Rosa

 



Rosa : Flor : 
de Damasco já esquecida :  
na Flor da Rosa adormecida.
 
"Inscrição que se podia ler na pesada tampa de pedra que, no chão, a um canto e ao fundo da Casa do Capítulo, servia de acesso à cripta. Lá dentro, no seu pedestal, a Flor de Damasco, vinda em tempos do Salão dos Poetas do Palácio Xarajibe (Palácio das Varandas do Castelo de Silves) jazia indiferente ao passar do tempo, bela e inigmática."
 
 Silves, Touria da Baleia, Santa Maria da Feira, Flor da Rosa... o percurso sinuoso não lhe tinha tirado o encanto. Estava a salvo no seu último repouso.
 
Fundado em 1356 por Álvaro Gonçalves Pereira, o solar recebeu o nome da Flor da Rosa em virtude de a  albergar no seu seio. Em inícios de 1894 restava-lhe ainda de pé a antiga igreja fendida de alto a baixo, formando o flanco avançado de um castelo em ruínas. Em cima, no ângulo de uma das muralhas, que era por certo o fundo do arco cruzeiro, salientava-se, já destroçada, a varanda de um mata-cães.
 
Entrava-se no recinto murado da velha mansão, por uma baixa porta ogival, de grossas hombreiras talhadas em granito negro, esboroadas pelo tempo. Em frente, num vasto terreiro, em volta do qual ainda existiam as divisões de alvenaria que outrora foram lugares de venda dos "panneireiros", por ocasião das feiras, e cujo aluguer foi uma das fontes privilegiadas de receita do castelo.
 
A igreja ficava à direita. À porta a haste de uma cruz de pedra sobre degraus deslocados. Silêncio profundo,  apenas perturbado pelo chilrear dos pardais, aninhados nos vãos dos enxilhares da argamassa. O primitivo portal da igreja desapareceu com os restauros do século XVII e o que o substituiu, aberto entre o corpo avançado de um dos braços do cruzeiro e a torre, era moderno, sem beleza de linhas ou delicadeza de pormenores.
 
 
Os mesmos restauros substituiram nas muralhas do convento as estreitas frestas por grandes janelas quase quadradas, de hombreiras finas de mármore branco. Dando uma volta ao redor do velho solar doía ver a ruína e o abandono a que tudo chegara. Algumas janelas eram enormes buracos escancarados. As portas emparedadas para evitar que lá por dentro se acoutassem feras e bandidos.
 
A igreja da Flor da Rosa era em forma de cruz latina, com as paredes nuas, altar-mor e mais dois altares no topo dos braços cruzeiros. Os tectos subiam em abóboda de lanceta. Ao meio da nave erguia-se , sem epitáfio, o túmulo do fundador da casa, o prior Álvaro Gonçalves Pereira, tendo apenas como indicação duas cruzes na cabeceira da lápide: uma da Ordem de Malta e outra, floreada, dos Pereiras.
 
 
Fizeram bem em não lhe deixar epitáfio. Quando um frade guerreiro, filho de um arcebispo, deixa no mundo trinta e dois filhos ilegítimos, e que entre estes um se chamou Nuno Álvares Pereira, pode ficar debaixo da campa sem que nela se lhe grave o nome.
 
No cruzeiro, eleva-se do chão, assente sobre leões, uma fina lápide, tendo gravadas as armas dos Almeidas. "Aqui jaz D. Diogo Fernandes de Almeida, prior do Crato". Sobre a lage que cobre os ossos deste varão ardiam várias lamparinas votivas e viam-se vestígios de culto constante. Como já se disse, esta casa foi fundada em 1356 por Álvaro Gonçalves Pereira "para remissão dos seus pecados", como diz a carta de doação que el-Rei Dom Fernando deu ao fundador como padroeiro da igreja de Santa Maria de Castelo de Vide.
 
A lenda conta que a edificação da igreja, onde então existia uma ermida de São Bento, seria dedicada a Nossa Senhora das Neves, na piedosa intenção de restituir a imagem ao seu antigo lugar, mas por mais que se esforçassem, os trabalhadores, no dia seguinte encontravam sempre as ferramentas no ponto exacto onde a imagem tinha sido encontrada. Por isso aí se construiu a igreja, embora em terreno falso e alagadiço, "entendendo-se" que era vontade da Virgem ficar no lugar onde tinha estado oculta tanto tempo.
 
Quasi rosa plantata super rivus aquarum.
 
Mas isso é a lenda que encobre aquilo que sabemos sobre a outra "rosa"... 
 
Da igreja ia-se para a sacristia, onde já se interpunham as obras do século XVII, por um grande arco de volta inteira, sobre o qual foi lançada a escada que levava ao côro. Existia nesta sacristia um quadro pintado em madeira, representando o Calvário, de bom desenho e fina pincelada.
 
Do côro passava-se depois ao velho convento. Os telhados há muito que ali abateram depois de apodrecidos os madeiramentos. O edifício está hoje a descoberto. Vai-se de uma a outra sala por portas estreitas e baixas, que eram outros tantos meios de defesa. Na cachorrada, em volta do coroamento das paredes da igreja, e que lá de baixo parecem restos de uma larga sanca, correm os balaustres de espaçosa varanda onde se enraizaram figueiras silvestres.
 
Por escada mal segura que se escancara na volta de um corredor, desce-se a um recinto sombrio, escuro, severo, musgoso e húmido, que deve ter sido a casa do capítulo. Casarão comprido, coberto por abóbada de volta inteira, cujos arcos mestres descansam em cachorros salientes das partes e vem apoiar-se sobre três colunas torcidas que se elevam ao centro. As paredes são de grossa enxilharia regular, sem vestígios de revestimento, e entre as marcas de grandes e grosseiros caracteres que assinalam cada uma delas, lê-se a data de 1642.
 

A 17 de Janeiro de 1897 as muralhas da igreja vergaram-se ao tempo e ruiram. 
 
  



quarta-feira, 16 de julho de 2025

Bisa Domingos

 


  Nas longas noites de inverno, o meu avô António costumava reunir-nos à sua volta para, com um brilhosinho nos olhos, partilhar connosco todo um rosário de memórias. Por vezes madrugada dentro. Histórias antigas de família que nos deixava completamente rendidos e encantados. Algumas dessas memórias ficaram-me gravadas para sempre. Ávido em aprender os sentidos da vida, guardava com extremo carinho todos os pormenores, catalogando-os no meu imaginário de miúdo com a precisão de um bibliotecário.

  Dizia o meu avô António que o bisavô Domingos, seu pai, sempre foi um "homem dos sete ofícios". De pequena estatura mas com uma "genica" enorme, era um destemido aventureiro. Exímio marinheiro, pescador por vocação e amor ao mar, tinha uma pequena embarcação lá para os lados de Cambelas onde vivia com a mãe. Quando por vezes o rigor do inverno se impunha e o mar "não dava", virava jornaleiro em terra, aceitando todo o tipo de trabalhos. Fazia de tudo! Um autêntico "fura vidas".

   "Uma vez foi contratado para a apanha da cereja, lá para os lados do Fundão. Corria o ano de 1893. Em princípio, o bisa estaria fora uns dois meses, isolado, sem dar notícias. Acabou por aparecer em casa quatro meses depois, estranho, pensativo, trazendo com ele uma carroça que não lhe pertencia, puxada por um macho possante. A mãe ao vê-lo comentou: "Outra vez no contrabando. Ai Domingos, um dia destes...", e olhando as duas caixas de madeira, com fechaduras em forma de cruz perguntou-lhe: "... o que é que trazes aí desta vez?

  Então o bisa contou-lhe em pormenor a aventura que tinha vivido. Tinha estado na campanha da cereja e quando esta acabou, recebeu a proposta para um trabalho extra. Teria de ir com mais uns quantos trabalhadores, acompanhados de outros indivíduos que nunca soube quem eram, a S. Miguel de Acha que ficava a uns quilómetros do Fundão, recolher uns "baús" e trazê-los para Lisboa. Como ficava de certa forma a caminho de casa e era um trabalho bem pago, aceitou.

  A casa onde foram fazer a recolha era muito antiga, contou o bisa, e dizia-se que ia ser demolida juntamente com outras, pelo que tinham urgência no trabalho. Levaram horas na estranha "cave" a recolher livros, documentos e objectos e encheram seis malões que colocaram em três carroças. Sempre sob os olhares atentos do dono da casa, que dizia chamar-se David e um estranho frade que nunca disse o nome.

  Dispensados os outros trabalhadores, partiram para Lisboa mas poucos quilómetros depois começaram a ser perseguidos por soldados do rei que os tentaram parar. Fugiram em três direcções diferentes e como a guarda não se dispersou focando-se apenas numa das carroças que não a sua, viram-se o bisa Domingos e os companheiros, mais folgados na fuga. Apareceram no Rosmaninhal em casa da tia Maria Neves que lhes deu guarida por uns dias. O susto tinha sido grande e esperaram que as coisas acalmassem. Depois decidiram seguir viagem.

  Longa foi a jornada, sempre cheia de temores e sobressaltos, por campos enlameados, serras e vales, longe das estradas e povoações e quando chegaram por alturas da serra dos Candeeiros os colegas de viagem pediram ao bisa Domingos que tentasse chegar a casa o mais rápido possível e escondesse os malões bem escondidos porque levá-los para Lisboa seria demasiado arriscado. Disseram-lhe que alguém depois os iria buscar e ele seria bem recompensado. "Como é que eu os vou reconhecer?" perguntou o bisa. "Está a ver este anel? Será alguém com um igual." Responderam-lhe. E deram-lhe um para também se identificar. Depois separaram-se.

O bisa Domingos seguiu em direcção à costa e desceu até  Cambelas por caminhos que conhecia bem. Escondeu a carga que trazia, primeiro num moinho abandonado ali perto e depois numa pequena cave que escavou em sua casa por baixo do próprio quarto. E ali ficou o  seu "tesouro", como lhe chamava, guardado até que alguém o viesse buscar."

  Passaram-se anos e ninguém apareceu para reclamar o que ficou à sua guarda. A vida continuou como sempre fôra e o bisa Domingos casou, constituíu família, nasceram os filhos e coube a um deles, o avô António, ficar a saber da existência daquele espólio e da história que o envolvia. Passou-lhe o testemunho pedindo-lhe que guardasse segredo e só usasse o anel se necessário fosse. E os anos foram passando.

Sentindo o peso dos anos, o bisa Domingos cada vez menos aceitava os trabalhos de jorna, dedicando-se apenas ao que gostava de fazer: sair para o mar e pescar. Pescava sozinho no seu pequeno batel equipado com uma rudimentar vela e um par de remos. Muitas vezes adormecia com o fio de pesca atado ao dedo grande do pé à espera que o peixe "picasse". Já o tinham avisado para ter cuidado mas respondia sempre que se tivesse de morrer era no mar que tanto gostava. Num fim de tarde enquanto dormia e esperava que mais um peixe picasse, formou-se uma pequena nortada que logo se tornou tempestade... e o bisa Domingos nunca mais foi visto.

Tinha no entanto, garantido um novo guardião, herdeiro do seu legado. 

terça-feira, 15 de julho de 2025

Avô António

 


 

 O avô António era um homem robusto, de aspecto nórdico, olhos azuis-cinza (herdado por via materna), extremamente calmo, apesar de na tropa ter posto uns quantos desordeiros em sentido empunhando um daqueles bancos corridos de refeitório como se fosse um mata-moscas. Por isso, porque diziam ter a força de um cavalo, deram-lhe a alcunha de o "Cavalas". No entanto era um poço de bondade.

 Na juventude a sua vida não foi muito diferente da do bisa Domingos, seu pai, apesar de não ser tão temerário no que respeita à actividade de pescador. Mas o mar também lhe corria nas veias e quando chegou à idade legal, foi para a Marinha Mercante. Pode-se dizer que viajou pelos "sete mares" percorrendo as rotas do Império Português do Ultramar; Guiné, Cabo Verde, S. Tomé, Angola, Moçambique, Índia, Macau, Timor... e mais houvesse!

Andou em muitos navios e naquele era a primeira vez que ia carregar ao porto de Luanda, em Angola. Uma tarde, pela latitude das ilhas de S. Tomé e Príncipe, o comandante contou-lhe a história daquele negro que costumava aparecer junto à amurada do navio para olhar o mar. N'Bemba (assim se chamava) era o cozinheiro. Homem de estatura colossal, já entrado na idade, possuia uma particularidade que se notava bem quando sorria; tinha os dentes limados em forma de bicos, comum na sua tribo, o que lhe dava um aspecto feroz. No entanto não passava de uma pobre alma atormentada.

N'Bemba tinha tido um ajudante de cozinha, miúdo com quem se dava como se fosse um filho (dizia-se que talvez até fosse) e que por alturas de S. Tomé (precisamente onde agora navegavam), o garoto numa das suas brincadeiras caíu ao mar e foi devorado pelos tubarões que costumam infestar aquelas águas. N'Bemba gritou, aflito, esbracejou, deseperado, assistindo impotente à tragédia. Sentiu a alma a abandonar-lhe o corpo. Gritou a plenos pulmões e gritou chorando até os seus gritos se tornarem roucos. Quase mudos. Quase inaudíveis. Até não lhe restar mais que um fio de som. Por fim lançou um guincho desumano que se foi tornando longínquo. Nunca mais lhe ouviram uma palavra da sua boca.

Agora, dizia o comandante, sempre que passavam por aquele lugar n'Bemba cozia abóboras e deitava-as a ferver ao mar. Os tubarões abocanhavam-nas, engoliam-nas, e estas literalmente explodiam-lhes nas entranhas. Apareciam logo de seguida a boiar, de barriga para cima, em estertores de agonia. Era o ritual de n'Bemba. E o seu olhar era de profunda tristeza. Encontrara assim uma forma para aliviar a dor da sua perda. E n'Bemba olhava o mar com o olhar perdido de um marinheiro sem alma.


 Foram muitas as histórias e intermináveis as conversas ao entardecer entre o avô António e o seu comandante, memoriando passagens difíceis da vida, situações cómicas, sustos durante tempestades no mar, saudades de casa e da família, etc. Tinha nascido ali uma amizade. Um dia, quando passavam a cidade do Cabo, na África do Sul e segurando-se ambos ao corrimão da amurada devido ao mar agitado (típico daquela zona), o avô António reparou num pormenor que lhe fez gelar o sangue. O seu amigo comandante trazia no dedo de uma das mãos que seguravam o gradeamento, um anel. O anel...

Não era um anel qualquer. Era aquele mesmo anel de prata, igualzinho ao que o avô António trazia no seu fio ao pescoço desde que o bisa Domingos lho tinha confiado. Não havia dúvidas! Era igualzinho! O impacto daquela visão quase lhe fez parar o coração. Trouxe-lhe à memória acontecimentos passados dos quais já quase não se lembrava. E o avô António, inexplicavelmente, contra toda a lógica, disfarçou a surpresa e não disse uma palavra. 

   Ao fim de quase uma eternidade, o contacto tinha acontecido. Mas só o meu avô sabia.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Neves Coelha

 

 

 A bisa Maria das Neves, mãe do avô António e mulher do bisa Domingos, era irmã da outra Maria das Neves do Rosmaninhal, referida na primeira publicação. Uma era Maria Luísa e a outra Maria Aurora. Ambas Neves Coelho. A do Rosmaninhal era senhora de uma sensibilidade espiritual refinada; o que hoje chamaríamos de Meiga ou Maga. E praticava. A bisa Maria Luísa, se também o era, não manifestava tal dom. Mas esclareçamos primeiro de onde vinha este sobrenome Neves Coelho.

Em séculos idos, as mulheres que tinham uma ligação forte à mãe natureza e acumulavam conhecimento e sabedoria retirada dessa relação eram perseguidas, acusadas de bruxaria e muitas vezes condenadas à fogueira. Os nomes próprios que usavam e principalmente os sobrenomes eram por vezes elucidativos das capacidades e poderes que detinham. Por isso, na frágil tentativa de evitar a "Santa" Inquisição, mudavam-nos para outros menos "profanos", embora os mantivessem tanto quanto possível sinónimos dos anteriores.

De onde derivavam então  estas Neves Coelho? Derivavam das Alvas (Brancas ou Auroras) e Coelo (Céu ou Celeste). Apesar de Coelo soar 'tchélo' em latim, lia-se Coelo>Coelho em português. E assim ficou. As "Auroras Celestes", como eram conhecidas muitas das Meigas (entre outros tantos títulos semelhantes) viraram assim Neves Coelho.

E o que significavam as Auroras Celestes? A luz do amanhecer, o  nascer de um novo dia. E qual a estrela que se mantinha no céu ao amanhecer como guia e protectora dos "navegantes"? A Stella Maris! Nada mais nada menos que a presença dissimulada do culto Mariano!

... e se os Magos veneravam João, as Meigas, todas elas, veneravam Maria.

E se no horizonte a Lua se juntava a Vénus, era a comunhão perfeita!

domingo, 13 de julho de 2025

A herança

 

Voltemos então ao avô António e ao seu amigo comandante da Marinha Mercante.

 

Os anos passaram e com o avô já sócio da concessão de "banheiros"  na Praia do Sul, da Ericeira, cuja actividade se centrava no aluguer de barracas e toldos na época balnear, eis que aparece o nosso comandante, de férias e a banhos com a respectiva família. E aluga uma barraca e dois toldos precisamente na zona de praia explorada pelo avô António. Reconheceram-se! O reencontro foi efusivo como era de esperar. -"As surpresas que o destino nos reserva! Voltamos a ver-nos ao fim de tanto tempo. Venham daí esses ossos!"- diziam emocionados um para o outro por entre cumprimentos e abraços.

O comandante apreciou as férias na vila da Ericeira. Naquelas "santas termas", como lhe chamava. Gostou da frescura das manhãs e do aroma saudável e adocicado a iodo que se desprendia das lages negras da praia na maré vazia. A família adorou e prometeram voltar no ano seguinte. -"Ficámos viciados nisto"- diziam. E voltaram sempre por largos anos. 

 

Um verão, o avô António por entre copos e jogos de damas lá acabou por puxar a conversa sobre o anel que o comandante usava e o seu significado e proveniência. Este, atrapalhado, tentou inventar uma história meio esfarrapada, esquivou-se como pôde ao assunto mas acabou por ceder quando o avô António lhe mostrou o "seu" anel, cópia fiel do anel do comandante. O mundo deve ter parado naquele instante!

Passada a surpresa e afinadas as "agulhas",  havia que devolver o seu a seu dono e as caixas com os ferrolhos em forma de cruz de Cristo, guardadas há uma eternidade, lá foram desenterradas da sua sepultura do Serrado do Poço, lugar onde o avô habitava na Ericeira. Velhinhas, já a decompôrem-se, mas com o seu conteúdo bem protegido e conservado, lá se foram juntar finalmente às restantes. O "tesouro" voltava a estar completo. E a Irmandade agradeceu.

A partir daqui o avô António passou a fazer parte integrante daquela fraternidade e no fim de um Verão, tinha eu os meus 14 anos, fui levado "emprestado" para Santarém para "aprender umas coisas" por uns tempos. O meu avô que me tinha criado com ele desde pequeno deixava-me ir, assim, para o seio daqueles que o acolheram em tempos e que me acolhiam agora a mim. Relutante em largar-me a mão. Protector.

O "mundo" que encontrei e no qual começava a integrar-me era indescritível. Tinha aquela sensação estranha de quem entra num Templo pela primeira vez. Os sons... A sensação de uma Paz total, contagiante. A sensação absoluta de que o mundo ficava definitivamente lá fora. E a descoberta gradual de verdades ocultas, a revelação de conhecimentos insuspeitos, começaram a moldar o meu espírito, a formar e a consolidar o carácter da pessoa que hoje sou. De certa forma, um ser abençoado.


 Santarém, Almeirim, Reguengos (de Monsaraz), Vila Viçosa... A "escola primária" estava feita. Dura, intensiva, recompensante. ...e a minha paixão: os cavalos. Aos 16, já "graduado", avanço para os estudos nas bibliotecas dispersas pelas famílias do meu ramo paterno. Boas e gratificantes surpresas nas velharias poeirentas e quase esquecidas dos Pereira, dos Azevedo, dos Amaral, dos Albuquerque. Tesouros.

Mas o que me entusiasmava mesmo eram os "encriptados". Documentos medievais cifrados que continham os registos da gestão de Ordens Militares como a do Templo e de Avis. Obtidas as "senhas" que haveriam de abrir portas há muito fechadas, era hora de meter os pés ao caminho... Especializei-me, pois, em criptografia. Primeiro nas "oficinas da Fundação", depois nas da Chefia de Reconhecimento de Transmissões (CHERET), vindo do Batalhão de Reconhecimento de Transmissões (BRT); não que o Exército tivesse alguma coisa a ver com a "Fundação" mas como a tropa na altura era obrigatória e a especialidade era "Cripto", pensei: porque não juntar o útil ao agradável ?

Rasgara os meus horizontes.  Abrira a mente a coisas impensáveis. Podia estar grato por algumas histórias se terem cruzado gerações atrás fruto de coincidências improváveis. Mas sem dúvida alguma tinha muito, mas muito a agradecer aos meus antepassados por deles ter herdado a capacidade de compreender o desconhecido e de conseguir ver para lá do visível.

Perante todos eles me curvo hoje com profundo respeito, muito carinho e admiração.