Rosa : Flor :
de Damasco já esquecida :
na Flor da Rosa adormecida.
"Inscrição que se podia ler na pesada tampa de pedra que, no chão, a um canto e ao fundo da Casa do Capítulo, servia de acesso à cripta. Lá dentro, no seu pedestal, a Flor de Damasco, vinda em tempos do Salão dos Poetas do Palácio Xarajibe (Palácio das Varandas do Castelo de Silves) jazia indiferente ao passar do tempo, bela e inigmática."
Silves, Touria da Baleia, Santa Maria da Feira, Flor da Rosa... o percurso sinuoso não lhe tinha tirado o encanto. Estava a salvo no seu último repouso.
Fundado em 1356 por Álvaro Gonçalves Pereira, o solar recebeu o nome da Flor da Rosa em virtude de a albergar no seu seio. Em inícios de 1894 restava-lhe ainda de pé a antiga igreja fendida de alto a baixo, formando o flanco avançado de um castelo em ruínas. Em cima, no ângulo de uma das muralhas, que era por certo o fundo do arco cruzeiro, salientava-se, já destroçada, a varanda de um mata-cães.
Entrava-se no recinto murado da velha mansão, por uma baixa porta ogival, de grossas hombreiras talhadas em granito negro, esboroadas pelo tempo. Em frente, num vasto terreiro, em volta do qual ainda existiam as divisões de alvenaria que outrora foram lugares de venda dos "panneireiros", por ocasião das feiras, e cujo aluguer foi uma das fontes privilegiadas de receita do castelo.
A igreja ficava à direita. À porta a haste de uma cruz de pedra sobre degraus deslocados. Silêncio profundo, apenas perturbado pelo chilrear dos pardais, aninhados nos vãos dos enxilhares da argamassa. O primitivo portal da igreja desapareceu com os restauros do século XVII e o que o substituiu, aberto entre o corpo avançado de um dos braços do cruzeiro e a torre, era moderno, sem beleza de linhas ou delicadeza de pormenores.
Os mesmos restauros substituiram nas muralhas do convento as estreitas frestas por grandes janelas quase quadradas, de hombreiras finas de mármore branco. Dando uma volta ao redor do velho solar doía ver a ruína e o abandono a que tudo chegara. Algumas janelas eram enormes buracos escancarados. As portas emparedadas para evitar que lá por dentro se acoutassem feras e bandidos.
A igreja da Flor da Rosa era em forma de cruz latina, com as paredes nuas, altar-mor e mais dois altares no topo dos braços cruzeiros. Os tectos subiam em abóboda de lanceta. Ao meio da nave erguia-se , sem epitáfio, o túmulo do fundador da casa, o prior Álvaro Gonçalves Pereira, tendo apenas como indicação duas cruzes na cabeceira da lápide: uma da Ordem de Malta e outra, floreada, dos Pereiras.
Fizeram bem em não lhe deixar epitáfio. Quando um frade guerreiro, filho de um arcebispo, deixa no mundo trinta e dois filhos ilegítimos, e que entre estes um se chamou Nuno Álvares Pereira, pode ficar debaixo da campa sem que nela se lhe grave o nome.
No cruzeiro, eleva-se do chão, assente sobre leões, uma fina lápide, tendo gravadas as armas dos Almeidas. "Aqui jaz D. Diogo Fernandes de Almeida, prior do Crato". Sobre a lage que cobre os ossos deste varão ardiam várias lamparinas votivas e viam-se vestígios de culto constante. Como já se disse, esta casa foi fundada em 1356 por Álvaro Gonçalves Pereira "para remissão dos seus pecados", como diz a carta de doação que el-Rei Dom Fernando deu ao fundador como padroeiro da igreja de Santa Maria de Castelo de Vide.
A lenda conta que a edificação da igreja, onde então existia uma ermida de São Bento, seria dedicada a Nossa Senhora das Neves, na piedosa intenção de restituir a imagem ao seu antigo lugar, mas por mais que se esforçassem, os trabalhadores, no dia seguinte encontravam sempre as ferramentas no ponto exacto onde a imagem tinha sido encontrada. Por isso aí se construiu a igreja, embora em terreno falso e alagadiço, "entendendo-se" que era vontade da Virgem ficar no lugar onde tinha estado oculta tanto tempo.
Quasi rosa plantata super rivus aquarum.
Mas isso é a lenda que encobre aquilo que sabemos sobre a outra "rosa"...
Da igreja ia-se para a sacristia, onde já se interpunham as obras do século XVII, por um grande arco de volta inteira, sobre o qual foi lançada a escada que levava ao côro. Existia nesta sacristia um quadro pintado em madeira, representando o Calvário, de bom desenho e fina pincelada.
Do côro passava-se depois ao velho convento. Os telhados há muito que ali abateram depois de apodrecidos os madeiramentos. O edifício está hoje a descoberto. Vai-se de uma a outra sala por portas estreitas e baixas, que eram outros tantos meios de defesa. Na cachorrada, em volta do coroamento das paredes da igreja, e que lá de baixo parecem restos de uma larga sanca, correm os balaustres de espaçosa varanda onde se enraizaram figueiras silvestres.
Por escada mal segura que se escancara na volta de um corredor, desce-se a um recinto sombrio, escuro, severo, musgoso e húmido, que deve ter sido a casa do capítulo. Casarão comprido, coberto por abóbada de volta inteira, cujos arcos mestres descansam em cachorros salientes das partes e vem apoiar-se sobre três colunas torcidas que se elevam ao centro. As paredes são de grossa enxilharia regular, sem vestígios de revestimento, e entre as marcas de grandes e grosseiros caracteres que assinalam cada uma delas, lê-se a data de 1642.
A 17 de Janeiro de 1897 as muralhas da igreja vergaram-se ao tempo e ruiram.